A planta de cannabis Beldia, também conhecida por nomes como Beldiya, Beldi e Maghribiya, ocupa um lugar profundamente enraizado no património marroquino, particularmente nas paisagens montanhosas áridas da região do Rif. Não é apenas uma variedade de cannabis—é um símbolo duradouro de resiliência, tradição e identidade, cultivada há séculos por gerações de agricultores berberes (amazigh).
O termo "Beldia" deriva da palavra árabe beldi, que significa "nativo" ou "daqui", em contraste com variedades híbridas estrangeiras introduzidas em décadas mais recentes que se denominam de "Romia", significando "forasteira" ou "de fora". Registos históricos e tradições orais sugerem que a cannabis tenha sido cultivada em Marrocos há mais de mil anos.
Referências indiretas à sua utilização podem ser encontradas em textos do geógrafo Al-Bakri (século XI), e em relatos de viagens de Ibn Battuta no século XIV, onde se mencionam práticas associadas a ervas de efeito psicoativo em rituais e cerimónias sufis (zawiyas), frequentemente ligadas às montanhas do Rif.
A Beldia é uma variedade landrace 100% Sativa, adaptada às condições pedoclimáticas do Rif. Estudos de genética comparativa realizados pela Universidade Cadi Ayyad (Marrakech, 2018) demonstraram que a Beldia tem um código genético distinto, com baixa heterozigosidade e traços únicos de resistência à seca. Os seus tricomas glandulares são pequenos mas densos, com secreção rica em terpenos de aroma terroso, e níveis de THC modestos (2,5%–5%).
Estudos fitoquímicos (Jabran et al., 2019) revelam uma concentração elevada de mirceno e cariofileno, com proporções equilibradas de CBD (até 2%) e traços de canabigerol (CBG), um canabinóide não-psicoativo com potencial terapêutico. Estes compostos tornam a Beldia uma candidata ideal para fins medicinais com baixo impacto psicotrópico.
O cultivo tradicional da Beldia é profundamente ligado ao ciclo agrícola amazigh. Os agricultores seguem métodos transmitidos oralmente, plantando as sementes (geralmente guardadas de gerações anteriores) após a primeira chuva de Fevereiro. O solo não é fertilizado com adubos químicos, e o desbaste da terra é feito manualmente. A planta cresce de forma robusta sem irrigação, dependendo exclusivamente das chuvas sazonais.
A colheita da Beldia é feita em Agosto, altura em que as famílias se reúnem para secar, processar e peneirar a planta. O método tradicional de extracção de tricomas, conhecido como tidnin (tidigin), consiste em bater as plantas secas sobre tambores cobertos com malhas finas. A primeira peneiração produz a resina de maior qualidade, conhecida como "primeira batida".
Na cosmologia amazigh, as plantas têm uma alma (ruh), e a Beldia é considerada uma planta protetora. Entre os povos do Rif, é comum oferecer pequenas quantidades de haxixe ou flor seca em celebrações e rituais como casamentos, colheitas e nascimentos. O consumo é frequentemente acompanhado por música gnawa ou issawa, cujos ritmos hipnóticos reforçam os efeitos meditativos da planta.
A cultura do sebsi—cachimbo estreito com câmara em madeira ou argila—permite doses controladas e partilhadas. Esta prática comunitária reforça laços sociais e é entendida como um acto de confiança e respeito mútuo.
A pressão do mercado global e a procura por produtos com elevado teor de THC levaram à introdução de híbridos ocidentais com genéticas dominantes. Estas estirpes, como White Widow, Pakistan, OG Kush, Amnesia Haze, entre outras, poluíram geneticamente os campos tradicionais através de polinização cruzada. Um estudo longitudinal do Instituto Nacional de Ciências Agronómicas (INRA, 2020) detetou uma redução de 40% na expressão genética autóctone da Beldia nos últimos 20 anos.
Programas-piloto como o Projet Rif 2030, liderado por cooperativas locais com apoio da União Europeia, procuram reintroduzir a Beldia em parcelas isoladas, protegidas de hibridação. Bancos de sementes como o "Maroc Génétique" armazenam amostras congeladas para futura reintrodução e melhoramento genético.
A Universidade Ibn Tofail e o Centre National de Recherche Scientifique et Technique (CNRST) lideram estudos genómicos para sequenciar o ADN da Beldia e catalogar os seus quimiotipos raros. A criação de um passaporte genético da estirpe poderá permitir a sua certificação como produto de denominação de origem controlada (DOC), garantindo autenticidade e valor de mercado.
A legalização parcial da cannabis em Marrocos em 2021 (Lei nº 13-21) representa um ponto de inflexão histórico. Esta medida abre portas à valorização da Beldia no mercado internacional de canabinóides de baixo impacto. No entanto, apenas três províncias do norte foram inicialmente autorizadas a cultivar legalmente, e o número de agricultores registados ainda é reduzido.
"A Beldia representa um ponto de confluência entre história, cultura e adaptação ecológica. Proteger esta estirpe não é apenas um ato de conservação—é um compromisso com a memória das comunidades indígenas do Rif e os seus sistemas de conhecimento ancestral."
Com o interesse global crescente por produtos orgânicos, landrace e de baixo teor de THC, a Beldia pode ainda encontrar um renascimento no palco internacional—não apenas como produto, mas como uma história de resiliência e tradição no coração do Norte de África. A sua autenticidade, simplicidade genética e ligação íntima ao território fazem dela uma candidata ideal para mercados que valorizam qualidade sobre quantidade.
As nossas viagens à região do Rif em Marrocos oferecem uma oportunidade única para explorar estas tradições de primeira mão. Participar na compreensão das técnicas ancestrais de cultivo e do papel cultural da cannabis faz parte de uma experiência imersiva que revela uma perspectiva mais profunda e respeitosa desta planta versátil e do património cultural das comunidades berberes.
Salvaguardar esta planta ancestral não é apenas preservar uma variedade botânica—é manter viva uma parte fundamental do património marroquino e, por extensão, do património agrícola e espiritual do mundo. Nesse sentido, torna-se cada vez mais pertinente considerar a Beldia como um verdadeiro Património Cultural Imaterial de Marrocos—um legado vivo que incorpora práticas agrícolas tradicionais, saberes locais e uma ligação profunda entre o ser humano, a planta e a terra.
Abélès, M. (2011). Anthropologie de l'État. Paris: Armand Colin.
Discussão sobre o papel do Estado e as margens legais nas regiões periféricas, incluindo o Rif.
Chouvy, P.-A. (2005). Morocco's Illicit Cannabis Cultivation: A Geopolitical Perspective. The Arab World Geographer, 8(1), 19–32.
Análise geopolítica do cultivo de cannabis no Rif e sua evolução no contexto do Estado marroquino.
Chouvy, P.-A. (2008). The Moroccan Cannabis Industry and the Politics of Hashish Production. Journal of Drug Issues, 38(4), 921–946.
Clarke, R. C. (1998). Hashish! Red Eye Press.
Uma das obras mais importantes sobre a história do haxixe e das variedades tradicionais como a Beldia.
Daoud, Z. (1993). Le Maroc: Régions, société, culture. Paris: L'Harmattan.
Informação sobre a diversidade cultural do Rif e a importância da agricultura tradicional.
El Azhari, M. (2015). Cultures du kif et politiques publiques dans le nord du Maroc. L'Année du Maghreb, 12, 347–367.
Estudo etnográfico sobre os modos de vida e estratégias sociais em torno do cultivo do kif.
INRA Maroc (Institut National de la Recherche Agronomique). (2019). Étude sur les variétés locales de cannabis dans le Rif central. Relatório técnico interno.
Levantamento genético e morfológico de linhagens Beldia em Chefchaouen e Al-Hoceima.
Khalifa Genetics (2021). Landrace Cannabis Preservation: The Case of Moroccan Beldia. Relatório técnico.
Iniciativa privada de conservação de sementes tradicionais Beldia, com dados genéticos comparativos.
ICARDA (2022). Genetic Erosion of Local Cannabis Strains in Morocco. Beirut: ICARDA Publications.
Análise científica da erosão genética da Beldia devido à polinização cruzada com híbridos modernos.
Russo, E. B. (2007). History of Cannabis and its Preparations in Saga, Science, and Sobriquet. Chemistry & Biodiversity, 4(8), 1614–1648.
Estudo amplo sobre o uso histórico da cannabis, incluindo referências ao Magrebe.
Choukri, M. (1973). Le Pain Nu. Casablanca: Éditions Maspero.
Obra literária fundamental que retrata a vida marginalizada no Norte de Marrocos, incluindo o uso cultural de substâncias como o kif.
Bennani-Chraïbi, M. (1994). Soumis et rebelles: les jeunes au Maroc. Casablanca: Éditions Le Fennec.
Estudo sociológico que analisa os jovens marroquinos e o seu envolvimento com práticas culturais alternativas.
Ibn Battuta. (1355). Rihla (Viagens). Tradução francesa: Voyages d'Ibn Battûta. Paris: La Découverte, 1996.
Referência histórica indireta às práticas medicinais e espirituais do Norte de África.
Haut-Commissariat au Plan (HCP). (2022). Cannabis au Maroc: Impact socio-économique et perspectives de légalisation. Rabat.
Análise das reformas legais recentes e do impacto potencial da legalização nas comunidades rurais.
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). (2003–2020). World Drug Report. Viena: UNODC.
Estatísticas globais sobre produção e tráfico de resina de cannabis, com foco em Marrocos.
Government of Morocco (2021). Loi n° 13-21 relative à l'usage légal du cannabis. Bulletin Officiel.
Texto da lei que regula o cultivo legal para fins medicinais, industriais e cosméticos.